Capacidades Organizacionais: O ponto cego no debate sobre IA

Você certamente conhece a lenda do canto da sereia, uma história antiga sobre seres míticos, metade mulher e metade peixe, que atraem marinheiros para a morte com seu canto hipnótico. A lenda simboliza a sedução perigosa e a ilusão, alertando sobre os perigos de ceder às tentações sem considerar as consequências. Diversas tecnologias ao longo da história têm se comportado como essas sereias. Basta lembrar da TV 3D, Google Glass, Netbook e o Metaverso. Isso mostra que novas tecnologias sempre despertaram curiosidade e geraram sentimentos de otimismo e pessimismo. No entanto, o efeito hipnótico que a tecnologia exerce sobre as pessoas é evidente, especialmente no contexto corporativo.

Nos últimos anos, a tecnologia mais sedutora e hipnótica tem sido a Inteligência Artificial (IA). O que mais me chama a atenção é que a maioria dos debates sobre IA se concentram apenas nos recursos tecnológicos e nas ferramentas surgidas em seu entorno. É como se os mares em que navegamos estivessem repletos de sereias.

Essa ampla oferta de soluções baseadas em IA causa certa perplexidade nos gestores de empresas. Isso ocorre porque o mundo corporativo ainda está preso ao paradigma de que o diferencial competitivo reside no recurso tecnológico, quando na verdade o diferencial está na capacidade que ele gera para o negócio. Por exemplo, quando os primeiros estudos sobre IA surgiram por volta de 1940, a missão era recriar a inteligência humana em uma máquina, utilizando recursos tecnológicos para ampliar nossa capacidade de resolver problemas complexos.

Quando limitamos o debate à esfera dos recursos, passamos a interpretar a IA através de quatro pontos de vista que tornam a discussão sobre IA incompleta e perigosa:

  1. IA como solução rápida: A ideia de que IA é uma bala de prata que resolve tudo com mínimo esforço.
  2. IA como algoritmos: Reduzir IA a mecanismos de inferência baseados em premissas conhecidas.
  3. IA como automação: Associar IA a máquinas fazendo tarefas antes inimagináveis.
  4. IA como aprendizado de máquina: Ver a IA como dependente da interferência humana para aprender.

Estes pontos de vista, trazidos pelo teórico americano Roger C. Schank em seu artigo “Where’s the AI?” de 1991, ainda são muito atuais. Arrisco afirmar que o primeiro ponto de vista é o mais frequente em contextos empresariais, e por isso as ofertas de cursos, serviços e consultorias sobre IA usam discursos nessa linha. É comum encontrarmos soluções baseadas em IA que se apresentam como milagrosas para aumentar faturamento, sugerindo uma relação direta entre recurso e resultado.

“A falta de clareza sobre as capacidades de negócios torna a discussão sobre IA nas organizações incompleta e potencialmente perigosa.”

Esses discursos ignoram a dimensão das competências essenciais de uma empresa, que combinam conhecimentos, habilidades e atitudes aplicados em contextos de negócio. Este modelo foi introduzido por Prahalad e Hamel em 1990 e reforça que há mais vantagens para uma empresa quando relacionamos o uso de uma tecnologia (recurso) a uma competência essencial. Isso permite que a organização responda de forma rápida e flexível a um ambiente dinâmico, usando as habilidades desenvolvidas. Segundo o modelo de Prahalad e Hamel, a relação de causa e efeito funciona em quatro dimensões:

  1. Recursos: Fontes para o desenvolvimento e aquisição de habilidades.
  2. Capacidades: Possibilidades de desenvolver competências essenciais.
  3. Vantagem competitiva: Desafio empresarial de se diferenciar no mercado.
  4. Estratégia: Desejo de maior participação possível no mercado.

Inspirados neste modelo, criamos na ABO Academy uma abordagem semelhante, mas colocamos o propósito no topo da equação e substituímos estratégia por resultados. A estrutura é:

  1. Propósito: Representa o significado e o ideal pelo qual a empresa existe.
  2. Resultados: Objetivos de negócio organizados em quatro perspectivas: financeiro, cliente, mercado e sociedade.
  3. Capacidades: Possibilidades de gerar os resultados pretendidos, classificadas em quatro pilares: sustentação, crescimento, inovação e transformação.
  4. Recursos: Fontes para que as capacidades sejam desenvolvidas, como estrutura e tecnologia.

Por isso que quando falamos das soluções de IA, criamos uma lacuna entre recursos e resultados. Da mesma forma que encaramos nessa visão, recurso como diferencial competitivo capaz de segmentar nossa empresa no mercado. A verdade é que recursos são diferenciais competitivos temporários, e hoje em dia, não seguram por muito tempo uma posição de destaque.

A importância de pensar em capacidades de negócio para evitar desastres com IA

É importante que gestores de negócios vejam a Inteligência Artificial como uma ferramenta poderosa para aprimorar as capacidades organizacionais. Tomemos como exemplo uma capacidade essencial para qualquer empresa: a tomada de decisão. Todos concordam que é crucial para o sucesso de um negócio. Mas como são tomadas as decisões nas empresas? Elas são baseadas em dados, sejam eles obtidos em conversas, leituras, palestras ou relatórios específicos. Quanto mais dados temos, maior a chance de tomar decisões mais adequadas. No entanto, somos limitados em acessar e organizar grandes volumes de dados de forma eficaz. É aqui que a IA pode ter um impacto significativo, ajudando a melhorar essa capacidade essencial.

No entanto, o problema de negócio dentro do processo de tomada de decisão não é apenas a falta de dados, mas também a formulação de melhores perguntas. A solução pode não ser necessariamente um novo recurso tecnológico, mesmo que seja a sedutora IA. Como diz uma frase popular na publicidade: “Muitas vezes queremos usar um canhão para matar uma mosca”. Só porque o canhão está disponível e acessível, não significa que seja a melhor solução.

A Inteligência Artificial, com suas redes neurais artificiais e o rápido avanço do aprendizado profundo, é uma tecnologia que promete transformar nossas vidas em um futuro próximo. No entanto, para que ela seja uma aliada, precisamos entender quais capacidades queremos aprimorar, em vez de focar apenas em quais tarefas queremos automatizar e qual a solução mais “legal” do mercado e que o Vale do Silício adotou.

Co-Fundador da ABO Academy, sócio e head de Consultoria na  SURYA | Business Agility Getting Real (2001), uma empresa de consultoria e educação executiva, referência em Agilidade de Negócios no Brasil, que desenvolve programas de aceleração de resultados baseados nas abordagens Lean, Ágil e Exponencial (ExO).

Formado em Publicidade e Propaganda, especialista em Marketing Estratégico e Mestrando em Ciência da Computação, atua como palestrante, mentor e consultor em projetos de agilidade de negócios e transformação digital de empresas.

Sou um incentivador, estudioso e disseminador dos princípios e valores presentes no papel do Agile Business Owner. Um modelo de liderança para a nova economia digital, que unifica o que há de melhor dos pensamentos Lean, Ágil e Exponencial e torna líderes de negócio agentes inspiradores e catalisadores de mudanças organizacionais.

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